Portuguese Summary of International Panel Report- Bitter Legacy - State Impunity in the Northern Ireland Conflict
Portuguese Summary28 April 2025
RESUMO EXECUTIVO
INTRODUÇÃO
Este relatório avalia até que ponto as graves violações dos direitos humanos ocorridas durante os 30 anos de Conflito na Irlanda do Norte (doravante denominado “Conflito armado” ou “Conflito”) permaneceram impunes. Em particular, o Relatório examina se o Governo do Reino Unido cumpriu suas obrigações legais internacionais de adotar medidas eficazes para combater a impunidade. Como demonstrado neste relatório, o Painel conclui que a impunidade estatal no Conflito pode ser caracterizada como generalizada, sistemática e sistêmica.
O Painel Independente sobre a Impunidade Estatal e o Conflito na Irlanda do Norte (doravante, o Painel) foi convocado pelo Centro Norueguês de Direitos Humanos, a pedido de organizações de direitos humanos sediadas na Irlanda do Norte: o Comitê para a Administração da Justiça e o Centro Pat Finucane. O Painel, composto por especialistas internacionais independentes, propôs-se a fazer um registro autorizado de evidências sobre padrões de impunidade por parte do Governo do Reino Unido em relação a violações de direitos humanos. Este trabalho foi realizado no contexto no qual se constata uma ausência de mecanismos oficiais eficazes para prestação de contas e investigação da verdade em relação ao Conflito.
A impunidade é a impossibilidade, de jure ou de facto, de levar os responsáveis por violações aos direitos humanos à justiça, seja através de processos penais, civis, administrativos ou disciplinares, por não estarem sujeitos a nenhuma investigação que possa levar à sua acusação, prisão, julgamento e, se considerados culpados, à imposição de sanções apropriadas, bem como de proporcionar reparação às vítimas.[1]
Combater a impunidade é uma obrigação jurídica vinculante para os Estados, que consiste em adotar medidas adequadas que assegurem a verdade, a justiça, as reparações e garantias de não repetição dos abusos cometidos. Vários estândares internacionais delineiam essas obrigações em relação a violações graves de direitos humanos: o dever de investigar e informar às vítimas sobre a verdade, enfatizando o direito de cada uma delas de saber o que ocorreu com seus familiares e o direito coletivo das sociedades de conhecer a verdade sobre eventos passados; a obrigação de processar e punir os perpetradores, proibindo medidas como a prescrição e as anistias que dificultem a justiça; o dever de proporcionar reparações às vítimas, incluindo restituição, compensação, reabilitação e satisfação; e a obrigação de adotar medidas para prevenir a recorrência de violações por meio de reformas institucionais e da promoção de uma cultura de respeito pelos direitos humanos.
O Acordo da Sexta-Feira Santa de 1998 (GFA, na sigla em inglês) não incluiu nenhum mecanismo geral de justiça transicional tampouco medidas concretas para abordar a impunidade. Nos anos posteriores, o Reino Unido foi criticado por não cumprir as obrigações decorrentes do Artigo 2 da Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH), que impõe ao Estado o dever de realizar investigações eficazes sobre os assassinatos, bem como por não cumprir outras obrigações em relação às vítimas de violações de direitos humanos. Algumas críticas vieram, por exemplo, do Relator Especial da ONU sobre a promoção da verdade, da justiça, da reparação e das garantias de não repetição, que apontou uma “lacuna de impunidade” na Irlanda do Norte.
Embora desde 1998 tenha surgido mais informação sobre abusos de direitos humanos relacionados ao Conflito, ela provém de investigações isoladas e ad-hoc, inquéritos e ações civis, mecanismos com mandatos e capacidade limitados, e de esforços de grupos da sociedade civil e vítimas. Muito ainda é desconhecido ou não reconhecido, e houve poucos avanços em termos de prestação de contas e busca pela verdade de forma geral.
A recente Lei do Legado e Reconciliação da Irlanda do Norte promulgada em 2023 (doravante, a Lei do Legado e Reconciliação) parece estar projetada para restringir tais esforços. A Lei tem sido amplamente criticada tanto por atores internacionais quanto nacionais: por exemplo, foi descrita pelo Conselho da Europa e pelo Relator Especial da ONU como uma flagrante violação das obrigações internacionais do Reino Unido. Também tem sido objeto de um consenso pouco comum entre os partidos políticos da Irlanda do Norte, pois tanto os nacionalistas quanto os unionistas e outros estão unidos na oposição a esta norma. Da mesma forma, tem sido fortemente resistida pelo Governo irlandês, todos os partidos políticos na República da Irlanda e os partidos de oposição atuais em Westminster. Este relatório é publicado no contexto de debates políticos e litígios em andamento em relação à Lei do Legado.
OBJETIVOS, ALCANCE E METODOLOGIA DO RELATÓRIO
Este relatório tem como objetivo destacar as lutas das vítimas e sobreviventes, muitos dos quais foram publicamente desacreditados ou demonizados, não tiveram a possibilidade de realizar uma campanha cara e arriscada pela responsabilização, ou perderam a esperança de obter justiça. Como grande parte da violência ocorreu há cerca de cinquenta anos, a janela de oportunidade para reunir essas vozes e apresentá-las publicamente pode se fechar em breve e tornou-se crítico abordar suas reivindicações contra a impunidade que afetou suas vidas e o bem-estar de suas comunidades.
O Painel também espera que as informações e a análise contidas neste relatório ajudem aqueles que continuam atuando contra a impunidade em relação ao conflito na Irlanda do Norte.
Um terceiro objetivo é brindar uma perspectiva internacional sobre os temas em questão, situando as violações de direitos humanos e a impunidade na Irlanda do Norte num contexto internacional e histórico mais amplo. As políticas e práticas questionáveis utilizadas durante o conflito na Irlanda do Norte parecem ter sido posteriormente "exportadas", direta ou indiretamente, para lugares como o Iraque ou o Afeganistão e também na chamada "guerra ao terror". A ausência de investigações efetivas sobre tais políticas e práticas contribuiu, portanto, para facilitar sua propagação mundial.
O Painel também enfatiza que as políticas e práticas britânicas que conduzem à impunidade podem ter repercussões internacionais mais amplas. O Reino Unido é membro do Conselho de Segurança da ONU, membro do G7 e via de regra é visto como um exemplo de um país democrático e onde rige o Estado de Direito. Se for permitido que avance sua decisão de habilitar a impunidade por abusos de direitos humanos, por meio da Lei de Legado e Reconciliação, é provável que regimes repressivos ao redor do mundo a utilizem para justificar e legitimar suas próprias políticas de impunidade. Da mesma forma, a aparente falta de respeito pelos direitos humanos demonstrada pela Lei de Legado e Reconciliação poderia contribuir para uma reação contra os direitos humanos nas democracias já estabelecidas e incentivar regimes autoritários em todo o mundo. Também poderia diminuir a autoridade e a legitimidade do Reino Unido quando intervir em outros países com o propósito de proteger os direitos humanos. Em resumo, embora os efeitos da impunidade sobre as pessoas da Irlanda do Norte sejam críticos e primordiais, as consequências e reverberações internacionais também também são relevantes.
O relatório se concentra em três áreas temáticas: assassinatos cometidos de maneira direta por forças estatais; tortura e maus-tratos cometidos por atores estatais; e assassinatos atribuídos a atores não estatais, onde há acusações de conluio com atores estatais. Esses temas foram escolhidos devido à sua gravidade, seus efeitos sobre indivíduos, comunidades e sociedade, e pelas claras obrigações legais que envolvem. Os assassinatos injustificados cometidos por atores estatais ou com sua cumplicidade representam o abuso extremo do poder estatal ao mesmo tempo que a tortura é um crime tipificado no direito internacional que não é permitido sob nenhuma circunstância.
É importante esclarecer que o foco deste relatório são as políticas e ações estatais, não os atores não estatais, como, por exemplo, aqueles pertencentes a grupos paramilitares ilegais, pois é o Estado que está autorizado e obrigado a realizar investigações e inquéritos e, onde for necessário, instaurar processos e aplicar punições penais.
A maioria dos assassinatos durante o Conflito foi realizada por atores não estatais. No entanto, além do contexto do conluio, não há alegações fundamentadas de que o Estado tivesse uma política ou prática de deixar impunes os grupos que atacavam seus próprios cidadãos e pessoal de segurança. De fato, estima-se que, durante o Conflito, cerca de 30.000 indivíduos foram encarcerados pelo Estado como membros de grupos armados não estatais, enquanto apenas um punhado de atores estatais foi preso durante esse período. Portanto, este relatório se concentra na lacuna de impunidade em relação às ações estatais.
No entanto, o Painel reconhece que o Governo do Reino Unido tem obrigações processuais em relação à investigação efetiva dos danos cometidos por grupos armados não estatais durante o conflito, e qualquer mecanismo futuro encarregado de estabelecer uma maior responsabilização, investigar a verdade e arcar com as reparações que correspondem, também deve examinar as ações de atores armados não estatais, responsabilizando-os de acordo com os padrões internacionais vinculantes e fornecendo reparações adequadas às suas vítimas.
Por último, embora o relatório se concentre maiormente na responsabilidade do Governo do Reino Unido por ações que ficaram impunes, também aborda falhas por parte do Governo irlandês em relação ao tratamento das vítimas e sobreviventes de ataques realizados em sua jurisdição.
A pesquisa do Painel baseia-se em informações de diversas fontes. Diferentes delegações do Painel realizaram um total de sete visitas à Irlanda do Norte para coletar evidências primárias. Os membros se reuniram com mais de 40 indivíduos e famílias de vítimas e sobreviventes durante as visitas a Belfast, Derry, Dublin e Armagh. Também se reuniram e consideraram evidências e informações de advogados e escritórios que representam legalmente as vítimas, ONGs que trabalham nessas questões e uma série de especialistas no tema. Além disso, os membros do painel se reuniram com pessoas envolvidas em mecanismos oficiais que investigam abusos passados, e com representantes de alto nível tanto do governo britânico quanto do irlandês, incluindo o Escritório da Irlanda do Norte e o Departamento de Assuntos Exteriores da Irlanda.
O Painel também se reuniu com a Ombudsman da Polícia da Irlanda do Norte, Marie Anderson, o ex-Ombudsman da Polícia, Dr. Michael Maguire, o Comissário Chefe Designado da Comissão Independente para a Reconciliação e Recuperação de Informação (ICRIR, na sigla em inglês), Sir Declan Morgan; e Jon Boutcher, Oficial Comandante da investigação da Operação Kenova (que pouco depois foi nomeado Chefe do Serviço de Polícia para a Irlanda do Norte, PSNI).
O Painel também se baseou amplamente numa série de provas documentais, incluindo: arquivos oficiais; documentos oficiais dos governos britânico e irlandês que são publicados anualmente; memorandos e outros documentos do governo britânico que foram desclassificados; sentenças judiciais; relatórios de investigações públicas; e relatórios da Oficina da Ombudsman da Polícia da Irlanda do Norte (OPONI, na sigla em inglês) e da Equipe de Investigação Histórica (HET).
BREVE HISTÓRIA DO CONFLITO NA IRLANDA DO NORTE E O TRATAMENTO DE SEU LEGADO
O conflito na Irlanda do Norte (referido por alguns como "os Troubles"), que ocorreu do final da década de 1960 até o final da década de 1990, envolveu um nível de violência jamais visto na Irlanda desde o início da década de 1920. Milhares de pessoas foram assassinadas por diversos atores, incluindo grupos armados republicanos (irlandeses), grupos paramilitares leais (britânicos) e forças de segurança e armadas do Reino Unido (polícia, exército). Um número desconhecido, mas significativo, de ataques foi cometido por paramilitares em conluio com o Estado. No total, estima-se que 3.720 pessoas foram assassinadas e 47.541 ficaram feridas. Calcula-se que 54% das mortes foram de civis e 68% dos feridos também eram civis. A população da Irlanda do Norte na época era de pouco mais de 1,5 milhão de pessoas.
Sob o Acordo de Sexta-Feira Santa de 1998, que marcou o fim do conflito em grande escala, a Irlanda do Norte permaneceu como parte do Reino Unido, sujeita ao consentimento de sua população. O acordo incluiu disposições para a libertação antecipada de prisioneiros condenados por crimes relacionados ao conflito, a desmilitarização e o desarmamento dos paramilitares, juntamente com reformas no sistema policial e judiciário.
Embora todas as partes do acordo tenham concordado em incorporar os direitos humanos na nova política do país, e o documento tenha sido apoiado pelos governos britânico e irlandês, o GFA não incluiu disposições para o estabelecimento de uma comissão da verdade ou outros mecanismos de justiça transicional. O acordo exigiu que o Reino Unido incorporasse a Convenção Europeia de Direitos Humanos à legislação da Irlanda do Norte, o que foi realizado por meio da Lei de Direitos Humanos de 1998.
Na ausência de um mecanismo geral para lidar com violações no contexto do conflito, uma série de iniciativas fragmentadas foi implementada para tratar os chamados "casos do legado", incluindo casos de torturas e assassinatos, mas cujo sucesso foi variável. Estas iniciativas incluiram investigações públicas, investigações realizadas pelo Ombudsman da Polícia, inquéritos conduzidos por médicos-legistas sobre mortes relacionadas ao conflito, investigações e revisões conduzidas pelo PSNI, inicialmente pela Equipe de Investigações Históricas e posteriormente pela Unidade de Investigação do Legado (LIB); e investigações policiais independentes, nas quais oficiais de polícia do Reino Unido, fora da Irlanda do Norte, foram chamados para investigar mortes ou torturas relacionadas ao conflito. Também houve um número muito pequeno de processos criminais contra ex-soldados britânicos acusados de assassinatos, com apenas uma única condenação por um assassinato relacionado ao conflito, que foi posteriormente suspensa.
Em muitos casos, o Estado transferiu o ônus da busca pela verdade para as famílias das vítimas e ONGs, em vez de assumi-lo diretamente. Nesse sentido, o Estado tem demonstrado ser um aliado pouco confiável na busca pela verdade, frequentemente perdendo provas, atrasando de forma excessiva a localização de testemunhas e empregando estratégias para atrasar os prazos judiciais.
Em 2014, foi alcançado um novo acordo entre os governos britânico e irlandês e os principais partidos da Irlanda do Norte para lidar com o passado, o Acordo de Stormont House (SHA, na sigla em inglês). Mencionado acordo propôs a criação de dois novos órgãos: uma Unidade de Investigações Históricas (HIU, na sigla em inglês) para realizar investigações em conformidade com a Convenção Europeia de Direitos Humanos sobre mortes não resolvidas relacionadas ao conflito e produzir um relatório para cada família de vítimas; e uma Comissão Independente para Recuperação de Informação (ICIR, na sigla em inglês) para que vítimas e sobreviventes pudessem buscar e receber informações de forma privada sobre mortes de familiares relacionadas ao conflito, com base em declarações protegidas que não poderiam ser usadas em processos civis ou criminais.
O painel concluiu que o governo britânico não cumpriu suas obrigações sob o SHA e, em vez disso, aprovou a Lei de Legado e Reconciliação da Irlanda do Norte em 2023. Este relatório conclui que a lei impedirá novas investigações sobre o legado, encerrará muitas das investigações em andamento e proibirá indefinidamente o início ou continuidade de qualquer investigação criminal sobre crimes relacionados ao conflito. A lei introduzirá também uma anistia sob um "esquema de imunidade condicional" para os responsáveis por crimes como assassinato, tortura e violência sexual; proibirá todas as ações civis relacionadas ao conflito (incluindo mais de 500 ações judiciais contra o exército britânico) a partir da data em que a lei foi apresentada no Parlamento do Reino Unido, em 17 de maio de 2022; e impôs o prazo final de 1º de maio de 2024 para a finalização de todos os casos judiciais e investigações do ombudsman.
Por último, embora a lei tenha criado a Comissão Independente para Reconciliação e Recuperação de Informação para examinar os casos, esta terá um mandato investigativo muito mais frágil do que os órgãos judiciais e policiais que a mesma veio substituir.
ASSASSINATOS ESTATAIS
Os agentes estatais assassinaram pelo menos 374 pessoas entre 1969 e 1998. A partir dos dados analisados pelo Painel, surgem vários padrões: a maioria das vítimas da violência estatal eram civis, mais de setenta por cento estavam indiscutivelmente desarmadas no momento de sua morte, e a maioria era católica. Os artigos 1º e 2º da CEDH (Convenção Europeia dos Direitos Humanos), interpretados em conjunto, impõem aos Estados signatários o dever de realizar investigações eficazes sobre as mortes causadas por agentes do Estado, sejam elas decorrentes de força letal ou de negligência.
Durante o conflito, apenas quatro soldados foram condenados por assassinatos cometidos em serviço entre 1969 e 1998. Não houve acusações contra atores estatais entre 1969 e 1974, período em que pelo menos 200 pessoas foram assassinadas por forças de segurança. De 1970 a 1973, a RUC (Royal Ulster Constabulary) e o Exército chegaram a um acordo que substituiu as investigações policiais sobre assassinatos militares por investigações realizadas pela Polícia Militar Real (RMP).
As evidentes deficiências desse sistema protegeram os soldados de responsabilidades pelos atos de violência estatal e são, provavelmente, a razão pela qual nenhum agente estatal foi processado entre 1969 e 1974. Em casos envolvendo o legado desses crimes, o Judiciário, recentemente, afirmou de forma repetida que essas investigações não foram adequadas nem justas.
Durante o conflito, as decisões de acusação enfrentaram duas grandes limitações. Primeiro, as decisões do Diretor de Processos Públicos (DPP) eram controladas pelo Procurador-Geral, que era dependente do Governo britânico. Segundo, o DPP não fornecia razões para as decisões de não processar casos de violência estatal. Embora aproximadamente um terço dos casos investigados pela Unidade de Investigação do Legado dentro da PSNI envolvam assassinatos estatais, a grande maioria dos assassinatos diretos do Estado continua sem ser processada.
O Painel avaliou se os assassinatos cometidos por agentes estatais foram objeto de uma investigação justa e eficaz, de acordo com o Artigo 2º da CEDH. Isso implicou a discriminação dos conceitos de justiça e eficácia em etapas e ações investigativas que estiveram disponíveis para os investigadores na época e, posteriormente, a análise de até que ponto essas etapas e ações foram adotadas.
De qualquer forma, toda investigação atual deve reconhecer que o que é considerado justo e eficaz pode mudar ao longo do tempo. Para enfrentar esses desafios, os membros do Painel analisaram uma série de investigações realizadas nas décadas de 1970, 80 e 90. As investigações foram divididas em etapas que formavam uma linha de base do que poderia ser considerado razoável de se esperar de uma investigação eficaz naquela época. O Painel baseou sua avaliação final em relatórios detalhando as investigações de 54 pessoas assassinadas.
A maioria dos casos analisados pelo Painel demonstrou má execução e/ou omissão de etapas investigativas fundamentais. A maioria mostrou sinais de que algumas ações foram realizadas, como o estabelecimento de cordões policiais, a captura de fotografias da cena do crime, a coleta de declarações de testemunhas e provas forenses, entre outros, mas muitas delas foram realizadas de forma superficial. As investigações eram incompletas, de deixaram em evidência que alguns passos básicos não foram cumpridos.
As investigações também careceram de estratégias adequadas para lidar com suspeitos, realizar prisões e assegurar e analisar provas. As prisões eram atrasadas ou sequer realizadas. Outras falhas incluíam não revistar as casas dos suspeitos, não verificar álibis ou não apreender veículos suspeitos para análise forense.
Os casos avaliados também revelaram falhas forenses, como a não comparação do sangue encontrado na cena do crime com o tipo sanguíneo dos suspeitos. Tanto as entrevistas com testemunhas quanto com suspeitos (e as declarações escritas associadas) eram breves e não exploravam suficientemente os detalhes. As entrevistas com suspeitos duravam entre 20 e 30 minutos e eram de baixa qualidade, sem aprofundamento ou questionamento das informações apresentadas.
Em documentos examinados, o Painel encontrou poucos exemplos nos quais o Governo do Reino Unido cumpriu suas obrigações relacionadas ao Artigo 2º da CEDH. As investigações analisadas em detalhe geralmente demonstraram grande incompetência e negligência, na melhor das hipóteses. Consequentemente, o Painel conclui que o Estado não realizou investigações justas e eficazes relacionadas aos assassinatos cometidos por agentes estatais e, em geral, as investigações falharam em garantir os direitos das famílias à verdade, justiça e reparação.
TORTURA E MAUS TRATOS
O Painel examinou denúncias de violações cometidas durante o conflito por indivíduos que atuavam oficialmente em nome do Estado. Diversas fontes revelaram que muitas pessoas foram submetidas a abusos que atingiram o limiar do Artigo 3º da CEDH, segundo o qual: "Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos desumanos ou degradantes".
Esses abusos ocorreram principalmente em contextos de detenção formal, mas também fora deles, como em espancamentos ocasionais durante buscas em ruas e residências. O Painel analisou casos envolvendo práticas de tortura como simulação de afogamento, choques elétricos, execuções simuladas, administração ou ameaça de drogas, abusos sexuais, humilhações e degradações sexuais.
O Painel também analisou casos em que as autoridades não forneceram cuidados médicos adequados às pessoas privadas de liberdade, o que também contraria o Artigo 3º da CEDH. Além disso, investigou casos em que os detidos foram hospitalizados após agressões, encontrando evidências de que pelo menos três mortes (em custódia ou logo após a liberação) não foram devidamente investigadas pelo Estado.
As forças armadas ou de segurança foram responsáveis por essa violência, direta ou indiretamente. As violações diretas foram realizadas por unidades do Exército britânico, pela Polícia Real do Ulster (RUC) - incluindo o Departamento de Investigações Criminais e a Divisão Especial- e por agentes penitenciários. As violações indiretas foram conduzidas por políticos, assessores jurídicos e funcionários públicos (principalmente do Escritório da Irlanda do Norte e do Ministério da Defesa). Esses grupos contribuíram para uma cultura de impunidade que permitiu que a tortura e os maus-tratos fossem aplicados sem controle.
Os locais onde proliferaram a tortura e os abusos na Irlanda do Norte incluíram quartéis do exército, como o Palácio de Holywood (administrado conjuntamente pelo RUC e o Exército até 1972), delegacias da RUC, centros de detenção (como Long Kesh e Ballykinlar) e o centro de interrogatório especialmente projetado fora do circuito em Ballykelly, onde os "Homens Encapuzados" foram torturados em 1971. A denominação "Homens Encapuzados" refere-se a um grupo de detidos que, além de receberem ameaças de morte e brutais espancamentos, foram submetidos às "cinco técnicas" de tortura: encapuzamento, posições de estresse, ruído branco, privação de sono e privação de comida e água. Posteriormente, os interrogatórios foram realizados em centros de detenção da RUC, como Castlereagh, Omagh e Gough Barracks. Os abusos ocorriam frequentemente em delegacias locais e em prisões como Maze e a prisão feminina de Armagh.
O capelão da prisão feminina de Armagh, padre Raymond Murray, destacou em seu relatório de 1976 que ninguém na comunidade conseguia entender por que o Exército britânico e a RUC pareciam ser imunes a condenações por crimes como matar pessoas e agredir prisioneiros. Quase 50 anos depois, a situação continua similar e ainda é possível afirmar o mesmo.
Apesar de uma grande quantidade de comissões de investigação ad hoc, inquéritos e ações civis, e dos esforços de grupos de vítimas, médicos do sistema penitenciário e sacerdotes, parece que foi concedida impunidade à grande maioria daqueles que cometeram crimes que se enquadrariam no Artigo 3 da CEDH. Embora milhares de denúncias tenham sido apresentadas, essas resultaram em pouquíssimos processos e quase nenhuma condenação. O painel encontrou apenas uma sentença de prisão (de seis meses) resultante de uma agressão muito grave cometida por membros do Regimento de Paraquedistas do Exército britânico, em que apenas um dos perpetradores foi condenado.
COLUSÃO
O conluio ou a colusão é geralmente entendida como a responsabilidade do Estado por sua participação ou por fazer "vista grossa" aos atos criminosos atribuídos a agentes não estatais. Mais especificamente, refere-se à responsabilidade do Governo britânico e das forças de segurança — a polícia, o Exército e o MI5 — por ações ilícitas de membros de organizações paramilitares, incluindo assassinatos e outros ataques físicos, geralmente contra civis desarmados.
Lord John Stevens, que investigou o assassinato do advogado Pat Finucane em 1989 e outros assassinatos cometidos por lealistas, definiu a colusão como uma prática que "vai desde a falha intencional em manter registros, a falta de prestação de contas, a retenção de inteligência e provas, até o envolvimento direto de agentes em assassinatos".
A colusão incluiu uma ampla gama de ações, tais como: ignorar ameaças dirigidas a indivíduos e não oferecer proteção; participar diretamente no planejamento e execução de assassinatos e outros atos violentos cometidos por grupos armados; fornecer armas e informações de inteligência a esses grupos para atividades ilícitas; não garantir que os agentes agissem dentro da legalidade; ocultar informações sobre a participação de informantes em crimes graves; e não investigar adequadamente os assassinatos cometidos por agentes não estatais. O último ponto incluiu a obstrução de investigações conduzidas por outros oficiais ou agências de segurança, além de ignorar provas forenses críticas e facilmente acessíveis.
Embora o Painel não possa determinar precisamente a extensão da colusão — uma tarefa que deveria ser atribuída a uma investigação formal eficaz —, está convencido, com base nas evidências apresentadas por organismos estatais, de que a colusão foi, frequentemente, uma prática profundamente enraizada nas agências estatais durante o conflito. Não pode ser atribuída apenas às ações de algumas "maçãs podres".
Uma série de investigações extensas realizadas por sucessivos ombudsmen policiais concluiu que, em diversos casos, práticas de colusão policial — como retenção de inteligência pela Divisão Especial, destruição de arquivos, proteção de informantes e falta de acompanhamento em investigações envolvendo suspeitos, veículos e armas — impediram que esses crimes fossem devidamente investigados, promovendo, assim, a impunidade. Essas práticas ocorreram em quase todo o período do conflito e afetaram toda a Irlanda do Norte.
CONCLUSÕES
O Painel avaliou a impunidade no contexto de três áreas: assassinatos cometidos por agentes estatais (Artigo 2º da CEDH), tortura e maus-tratos (Artigo 3º da CEDH) e conluio.
ASSASSINATOS ESTATAIS
O Painel concluiu que o Estado não cumpriu suas obrigações sob o Artigo 2º da CEDH de investigar os assassinatos de forma justa e eficaz. As investigações durante o conflito realizadas antes de 1974 foram sujeitas a um acordo entre a RUC e o exército, que substituiu as investigações policiais sobre assassinatos militares por investigações conduzidas pela Polícia Militar Real. Nesses procedimentos, também conhecidos como de “chá e sanduíches”, as entrevistas eram informais e os entrevistados não eram informados sobre seus direitos, o que significa que suas declarações não tinham valor probatório legal. O Painel concluiu que os casos posteriores a 1974 e até a década de 1980 foram caracterizados, em geral, pela omissão ou execução deficiente de passos essenciais nas investigações, onde linhas importantes de investigação não foram seguidas.
De modo geral, as investigações não respeitaram os direitos dos familiares à verdade, justiça e reparação. As entrevistas com os familiares revelam inúmeras falhas por parte do Estado, incluindo o descumprimento de estândares jurídicos existentes para proteger os direitos e a dignidade das vítimas e suas famílias. As autoridades estatais dificultaram a participação significativa das famílias nas investigações, retendo informações e atrasando os processos. Além disso, as famílias enfrentaram dificuldades e sofrimento adicionais devido à falta de prestação de contas por parte do Estado, à ausência de pedidos de desculpas e à carência de uma compensação adequada.
As investigações sobre o Legado realizadas após 1988 não abrangeram todos os assassinatos cometidos por agentes estatais, e o direito dos familiares à verdade, justiça e reparação não foi garantido plenamente. As investigações recentes que são consideradas bem-sucedidas, mesmo do ponto de vista dos familiares, destacam-se por entrevistas e apurações realizadas de forma profissional, empregando métodos e tecnologias modernos. No entanto, esses casos ainda são excepcionais.
O Painel constatou também que a legislação que regula as investigações sobre o Legado é excessivamente complexa, o que dificulta os esforços tanto da PSNI, incluindo a Equipe de Investigações Históricas, quanto do Ombudsman da Polícia. Nem o Ombudsman nem outros organismos podem realizar investigações sobre os assassinatos cometidos pela RUC, salvo em certos casos excepcionais relacionados à aparição de novas provas.
O OPONI não tem competência para investigar o exército. Quanto às apurações iniciadas pelas famílias, no final de 2023, apenas seis haviam sido concluídas, dezesseis haviam tido audiências, e treze tinham audiências programadas. Dezenove casos permaneciam sem designação. As garantias de não repetição, caso venham a ocorrer, têm pouco significado se as impunidades passadas não forem reconhecidas e enfrentadas.
O Painel também expressa dúvidas sobre se as investigações derivadas da Lei do Legado cumprirão o Artigo 2º da CEDH. Em fevereiro de 2024, o Tribunal Superior de Belfast determinou que a imunidade condicional estabelecida na Lei do Legado viola os Artigos 2º e 3º da CEDH. Essa decisão será apelada e poderá chegar ao Supremo Tribunal.
Mesmo que as disposições de imunidade da Lei sejam removidas ou que a própria Lei seja revogada por um governo futuro, é provável que ocorram atrasos severos. O chefe da PSNI, Jon Boutcher, apontou que as vítimas não foram suficientemente ouvidas nos debates sobre a legislação. Muitos familiares de vítimas mais velhos podem ser obrigados a aceitar que a justiça não chegará durante suas vidas.
TORTURA E MAUS TRATOS
O Painel concluiu que o Estado descumpriu suas obrigações sob o Artigo 3º da CEDH ao não investigar de maneira eficaz as denúncias de tortura e maus tratos cometidos por membros das forças de segurança. Mesmo no caso excepcional dos “Homens Encapuzados”, em que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos determinou que o Reino Unido violou o Artigo 3º devido ao uso combinado de cinco técnicas específicas durante operações de interrogatório, nenhuma investigação penal foi realizada que pudesse levar à identificação e ao julgamento dos responsáveis.
O Painel analisou o tratamento oficial das denúncias e os sistemas estabelecidos durante o conflito para administrar as milhares de acusações de abusos e maus tratos, principalmente em centros de interrogatório. Geralmente, as investigações conduzidas pela Unidade de Queixas e Disciplina da RUC eram superficiais e, embora alguns casos fossem encaminhados ao DPP, apenas uma pequena porcentagem resultava em processos, com um número ainda menor de condenações. O Painel conseguiu identificar apenas uma sentença de prisão resultante das ações das forças de segurança por violações do Artigo 3º. A falta de investigações eficazes prejudica o direito das vítimas à justiça e compromete o funcionamento adequado do estado de direito, impedindo que os perpetradores sejam responsabilizados.
Nos casos civis, observou-se um padrão diferente: os mesmos casos, baseados nos mesmos fatos, que enfrentavam obstáculos no âmbito penal geralmente eram resolvidos em favor dos denunciantes em sede de acordos civis. No entanto, nesses casos, embora houvesse indenização, não havia reconhecimento de responsabilidade. Na ausência de verdade, justiça ou um compromisso real com a não repetição, a compensação civil não pode ser considerada um remédio eficaz nem uma prova de que o Estado tenha enfrentado adequadamente a impunidade.
As evidências documentais restantes (incluindo relatórios médicos), em muitos casos, indicam claramente tortura e maus tratos. Nessas situações, os promotores da Coroa e os advogados que trabalhavam em nome do Estado aceitaram que havia altas probabilidades de que os tribunais civis decidissem a favor dos denunciantes. Por esse motivo, promoveram acordos financeiros com os familiares. No entanto, não foram implementadas sanções penais, administrativas ou disciplinares decorrentes desses fatos, que ajudassem a prevenir a repetição de abusos ou a identificar os responsáveis.
As garantias de não repetição e a introdução de procedimentos e processos que poderiam ter reduzido a violência durante os interrogatórios chegaram tarde demais para muitos. Essas reformas só foram implementadas após anos, e em muitos casos, décadas de campanhas sustentadas por sobreviventes, famílias, religiosos, políticos, advogados, organizações da sociedade civil e outros grupos. O Painel observou que, embora a implementação das reformas Bennett em 1980 tenha resultado em uma redução no número absoluto de denúncias provenientes de centros de detenção policial, elas chegaram tarde demais para aqueles que sofreram abusos na década de 1970. Além disso, embora a natureza geral das denúncias tenha mudado após as reformas Bennett, persistiram níveis de abuso físico, verbal, linguagem ameaçadora e ameaças contra advogados.
Os esforços para abordar a impunidade histórica por tortura e maus tratos geralmente falharam, embora alguns casos tenham sido tratados. Isso inclui o caso dos “Quatro de Derry”, onde dois jovens de 17 anos e dois de 18 anos foram coagidos a assinar confissões falsas sobre o assassinato de um soldado britânico em 1979. Eles foram absolvidos em 1998 e processaram o PSNI por terem sido acusados injustamente. Além disso, algumas pessoas que foram abusadas enquanto encarceradas como menores (junto com adultos) conseguiram ir em busca de compensação por meio do esquema de Abusos Institucionais Históricos.
Após a transição da RUC para o PSNI, aparentemente não houve um processo de triagem ou vetting para identificar e remover os membros da "velha guarda" responsáveis por violações de direitos humanos. Perderam-se muitas oportunidades de romper com a impunidade por meio de investigações justas, independentes e imparciais sobre violações históricas. Tampocuo foi estabelecido um mecanismo abrangente para identificar padrões na prática de torturas, vínculos entre os perpetradores, autorizações dentro da cadeia de comando, impactos nas famílias e comunidades, bem como os efeitos de longo prazo nos sobreviventes.
O ativismo persistente por muitos anos de alguns indivíduos não pode substituir as obrigações do Estado sob o direito internacional nem seu compromisso político de resolver essas questões. As desculpas pelos abusos têm sido excepcionais. Contudo, o Painel identificou um caso em que um ministro do governo se desculpou com um homem que havia sido submetido a um tratamento violador do Artigo 3º (num caso onde um perpetrador do Regimento de Paraquedistas britânico recebeu uma sentença de seis meses de prisão). Além disso, recentemente o PSNI (mas não o Governo do Reino Unido) pediu desculpas em nome de sua organização predecessora, a RUC, pelo seu papel na operação dos "Homens Encapuzados".
No entanto, ainda não houve reconhecimento nem pedido de desculpas pelos danos decorrentes de violações do Artigo 3º cometidas por membros das forças de segurança contra grupos mais amplos de vítimas (centenas, senão milhares). A Lei de Legado e Reconciliação de 2023 não abordará a impunidade histórica ou contemporânea por violações do Artigo 3º cometidas pelas forças de segurança na Irlanda do Norte, e fortalecerá o clima de impunidade ao eliminar vias de reparação, por mais limitadas que fossem, que estavam abertas a alguns sobreviventes, como investigações criminais e litígios civis, substituindo-as por um novo organismo de Legado de alcance restrito e com um período de operação limitado.
COLUSÃO
O Painel constatou que o dever do Estado de investigar denúncias de conluio, por meio de processos criminais e investigações eficazes, permaneceu amplamente não cumprido durante o conflito. O conluio foi claramente considerado pelo Estado britânico como uma tática útil, e prevaleceu o interesse em obter informações de inteligência sobre os impulsos para processar atos criminosos derivados delas. Também foi evidente para o Painel que, na República da Irlanda, casos que datam do início da década de 1970 não foram adequadamente investigados pelo governo irlandês durante o conflito. É importante observar que, com base em relatórios posteriores do Ombudsman da Polícia, o conluio foi identificado ao longo de diferentes períodos, desde os primeiros dias do conflito até a década de 1990. Além disso, foi identificado em diversas regiões geográficas da Irlanda do Norte, tanto em cidades quanto em áreas rurais, e até mesmo além da fronteira, no sul da Irlanda.
Não se tratava, como alguns alegaram, de apenas alguns elementos corruptos. A falta de investigação sobre esses assuntos dificilmente poderia ser explicada como lapsos temporários ou isolados. Dada a magnitude, duração e natureza das atividades de conluio, é difícil argumentar que os líderes políticos e das forças armadas e de segurança não tenham percebido padrões de comportamento que mereciam investigação.
As investigações policiais sobre incidentes violentos de relevância foram sistematicamente prejudicadas pela falta de cooperação do Serviço Especial, que incluiu práticas como retenção de informações de inteligência, "extravio" de provas e destruição de documentos. As informações eram retidas de forma rotineira por setores da RUC (em muitos casos, o Serviço Especial) e não compartilhadas com aqueles que investigavam assassinatos e outros crimes, como os detetives do Departamento de Investigações Criminais. Esse comportamento obstrutivo, em muitas ocasiões, equivalia a um encobrimento do conluio.
Os registros documentais que sobreviveram sugerem que havia evidências suficientes em muitos casos para apresentar acusações contra os perpetradores envolvidos no conluio na época. Um número desconhecido de vidas poderia ter sido salvo se os processos corretos tivessem sido seguidos durante o conflito.
A relutância do Estado em investigar, e muito menos processar, seus próprios agentes significou que as vítimas não obtiveram a prestação de contas a que têm direito. A falta de investigações eficazes afetou seriamente o direito das vítimas à justiça, à verdade e à reparação. As tentativas pós-conflito de descobrir a verdade e responsabilizar os perpetradores foram invariavelmente prejudicadas pela retenção de provas e, às vezes, pela perda definitiva dessas provas.
O Painel reconhece que, desde 1998, houve vários esforços investigativos em relação ao conluio, incluindo várias investigações públicas e relatórios do Gabinete do Ombudsman da Polícia da Irlanda do Norte. Esses esforços revelaram uma imagem mais ampla do conluio do que a que se tinha anteriormente. Em vários casos, as acusações de conluio feitas por vítimas, famílias e ONGs, que foram negadas e descartadas durante o conflito, posteriormente foram confirmadas como precisas por investigações formais. Pelo menos para algumas vítimas, isso resultou em algum grau de satisfação. Contudo, o dever de investigar de forma eficaz, processar e, onde a culpabilidade for estabelecida, punir, continua não cumprido.
Nos casos em que investigações foram realizadas por meio de algum dos mecanismos estatais, isso ocorreu principalmente como resultado de anos, ou até mesmo décadas, de pressão e campanhas de sobreviventes e famílias das vítimas. Embora tenha havido algumas condenações dos envolvidos no conluio e algumas vítimas tenham recebido compensação e mais detalhes sobre o que aconteceu em seus casos, muitas outras permanecem no escuro sobre quem cometeu o crime, se o Estado britânico tinha conhecimento prévio de que um ataque estava sendo planejado e, em caso afirmativo, por que não o impediu.
Não foi desenvolvido um mecanismo geral sobre o legado capaz de identificar padrões de conluio ou o impacto sobre as vítimas, sobreviventes e a sociedade em geral, nem foi feita uma triagem do pessoal para identificar os envolvidos no conluio. Embora alguns mecanismos (como investigações e inquéritos) tenham potencial para funcionar bem, as limitações inerentes aos seus mandatos e poderes significaram que, mesmo seus esforços combinados não conseguiram fornecer uma explicação completa sobre a magnitude e a natureza do conluio, nem identificar todos os envolvidos e responsáveis. O sistema fragmentado que os governos do Reino Unido e da Irlanda implementaram para lidar com o passado, e que caracterizou sua resposta às demandas por verdade e prestação de contas, é incapaz de oferecer uma compreensão completa sobre o conluio. Como resultado, essa abordagem não apenas falha em seu propósito, mas, em última análise, reforça a impunidade.
O governo britânico também falhou em termos de reconhecimento e pedido de desculpas. O Painel aponta que houve alguns pedidos parciais de desculpas em resposta a determinados casos individuais de conluio, mas não houve um reconhecimento amplo em nível governamental. Tal reconhecimento, bem como os pedidos de desculpas, fazem parte dos deveres dos Estados para com as vítimas após conflitos e violações de direitos humanos. Son importantes porque podem ser vistos como uma forma de reparação simbólica e podem ajudar na recuperação das vítimas, comunidades e da sociedade em geral. O fato de que a conivência tenha sido negada por tanto tempo torna o reconhecimento e o pedido público formal de desculpas altamente significativos. É particularmente importante em situações em que as violações e abusos não foram devidamente investigados e onde os fatos foram ocultados ou negados.
Em resumo, os mecanismos investigativos que operaram durante o período do Conflito não abordaram, nem podiam abordar efetivamente, as acusações de conivência devido aos seus mandatos, recursos e poderes limitados, assim como pela falta de vontade política. Muito poucos processos foram iniciados contra agentes estatais, e ainda persistem questões importantes sobre incidentes específicos, o alcance e o nível da conivência, bem como a responsabilidade de diversas agências estatais. Também permanecem dúvidas sobre o conhecimento que os altos níveis do governo tinham acerca das acusações de conivência e as medidas que, caso existissem, foram tomadas a respeito.
A Lei do Legado e da Reconciliação de 2023 concede imunidade aos crimes cometidos durante o conflito, incluindo os assassinatos vinculados ao conluio ou conivência. Ao desmantelar os mecanismos existentes que permitiram avanços parciais em justiça e verdade — particularmente as investigações do Ombudsman da polícia —, esta lei não apenas reforçará a impunidade em torno da conivência, mas também bloqueará a possibilidade de compreender plenamente sua extensão. Esse conhecimento é essencial para pôr fim ao ciclo de impunidade observado.
EFEITOS DA IMPUNIDADE EM INDIVÍDUOS E COMUNIDADES
A investigação do Painel confirmou que a falta de responsabilização por parte do Estado e a ausência de reparações e garantias de não repetição tiveram e continuam a ter consequências negativas para as vítimas, familiares, comunidades e a sociedade em geral. Ao longo de um ano, o Painel reuniu-se com famílias de vítimas de assassinatos cometidos pelo Estado. Reconhecendo a possibilidade de experiências distintas, o Painel constatou que os depoimentos eram representativos das experiências da maioria das famílias em relação aos processos investigativos estatais. Esses relatos ilustram vividamente inúmeras falhas por parte do Estado, incluindo o desrespeito aos estândares juridicos destinados a proteger os direitos e a dignidade das vítimas e de suas famílias. As autoridades estatais têm dificultado a participação significativa nas investigações ao reter informações e atrasar os processos, causando angústia contínua.
Embora reconheça a possibilidade de que as experiências sejam diferentes, o Painel concluiu que os testemunhos recolhidos refletem de forma representativa a maioria das interações das famílias com os processos de investigação estatais.
As famílias têm sofrido ainda mais devido à recusa do Estado em assumir a responsabilidade, pedir desculpas ou fornecer uma compensação adequada. Isso não apenas causou um trauma duradouro, mas também intensificou o sofrimento e a dor de muitos familiares. Como um familiar de uma vítima expressou ao Painel: “Gostaria que os soldados fossem responsabilizados, levados à justiça e admitissem o que fizeram. Não espero que isso aconteça, nem quero vê-los cumprir cem anos de prisão. Só quero que se levantem e digam: Sim, cometemos um erro, matamos, fizemos algo ilegal. Acredito na justiça; todos deveriam ser responsabilizados por seus crimes.”
A tortura e os maus-tratos também têm um efeito duradouro nas vítimas e em suas famílias. Um sobrevivente que falou com o Painel declarou: “A descarga elétrica destruiu minha memória. Não tenho boa memória até hoje. A luz branca tomou conta de tudo. Houve uma explosão interna na minha cabeça.” As pessoas sofreram traumas psicológicos e sintomas de estresse pós-traumático por muitos anos após a violação inicial de seus direitos. Alguns compartilharam com o Painel que, mesmo décadas depois, ainda lutam para lidar com o abuso que sofreram. Esse trauma, tanto individual quanto coletivo, afetou profundamente suas famílias e entes queridos, sendo agravado pela persistente impunidade dos abusos. Para muitos sobreviventes, saber que os perpetradores nunca foram responsabilizados apenas intensifica seu sofrimento. Além disso, a falta de justiça permitiu que os responsáveis continuassem a cometer novos abusos.
A necessidade das famílias em luto, das comunidades afetadas e da sociedade em geral de conhecer a verdade é especialmente urgente em casos de conluio, onde os encobrimentos e as negações da verdadeira natureza e das circunstâncias dos ataques têm sido uma característica marcante do problema. As suspeitas de que o próprio Estado esteve envolvido nos ataques ou em seu encobrimento – enquanto declarava formalmente que eram ações de atores ilegais não estatais – agravaram ainda mais a experiência das pessoas que perderam seus entes queridos. Muitos familiares investiram anos e décadas de suas vidas em esforços para obrigar o Estado a revelar a verdade, não apenas sobre as causas dos ataques que mataram seus entes queridos, mas também sobre a impunidade daqueles envolvidos.
Para alguns, esses esforços tornaram-se - no caso daqueles que já faleceram –, uma ocupação praticamente de tempo integral e o aspecto que definiu suas vidas adultas. A necessidade de se organizar, mobilizar, litigar e lutar de outras formas para obter algo de verdade – enquanto enfrentam a dor de perder um filho, um pai ou um cônjuge – foi traumatizante para muitos e causou sofrimento adicional. Uma mulher que perdeu o pai em um caso suspeito de conluio disse ao Painel: “Cinquenta anos depois, ainda estamos lutando. Sofro de depressão, ansiedade e fui diagnosticada com transtorno de estresse pós-traumático. Prometi à minha mãe: ‘se algo te acontecer, continuarei lutando’. Mamãe sempre quis saber quem o traiu, quem colocou o nome do meu pai na lista. Ele era um homem bom. A verdade a ajudará a encontrar paz de espírito. Se ela tiver paz de espírito, eu também terei. Ela nunca pôde realizar todos os seus planos, acha que fomos roubados, que perdemos coisas. O tempo não está ao lado dela, e espero que ela consiga algum tipo de paz de espírito. Não somos os únicos, há muitos de nós no mesmo barco.”
Para aqueles que, após anos de luta, conseguiram alcançar algum grau de verdade ou responsabilização, a experiência de ver suas preocupações devidamente investigadas e validadas costuma ser positiva, pois lhes permite sentir-se ouvidos e respeitados. No entanto, em muitos casos, a ausência de investigações apropriadas também contribuiu para a propagação de desinformação e rumores sobre as pessoas assassinadas, agravando ainda mais o sofrimento de suas famílias. Na ausência de uma narrativa oficial, as vítimas foram frequentemente estigmatizadas como envolvidas em atos de violência paramilitar. O reconhecimento da verdade poderia pôr fim a muitos casos de culpabilização das vítimas que as famílias tiveram que enfrentar.
A impunidade também gera consequências negativas para a comunidade em geral. As suspeitas contínuas de conluio, assassinatos ilegais e outros abusos, e a falha deliberada do Estado em abordá-los, afetaram a confiança das comunidades nas autoridades. O dano duradouro à reputação do Estado teve efeitos generalizados em diversos aspectos, incluindo as forças de segurança e as relações entre comunidades. Sem uma investigação pública completa, considerada confiável pelas comunidades afetadas, a desinformação, os rumores e a falta de confiança persistirão.
IMPUNIDADE: GENERALIZADA, SISTEMÁTICA E SISTÊMICA
O Painel conclui que a impunidade estatal no conflito na Irlanda do Norte é generalizada, sistemática e sistêmica. O uso do tempo presente "é" é deliberado porque a Lei do Legado e Reconciliação representa uma continuação dessa impunidade, e porque o Estado demonstrou que possui os recursos e a competência para cumprir suas obrigações sob os Artigos 2 e 3 da CEDH em casos que envolvem suspeitas de violações de direitos humanos por parte da polícia e do exército.
O Painel descreve a impunidade estatal como generalizada, sistemática e sistêmica porque as evidências coletadas e apresentadas neste relatório mostram que a responsabilidade por violações graves de direitos humanos não recai apenas sobre os oficiais envolvidos. Em outras palavras, as evidências não apontam para "algumas maçãs podres". A impunidade na Irlanda do Norte é produto do fracasso institucional por parte do Estado. Estados democráticos que respeitam o estado de direito possuem diversos mecanismos para garantir o cumprimento dos Artigos 2 e 3. Possuem, por exemplo, leis nacionais e internacionais, mecanismos de supervisão e de reclamações, procedimentos operacionais estândares, regras de compromisso, códigos de conduta, treinamento e educação, e hierarquias de tomada de decisão para garantir que não se desenvolvam culturas de impunidade e mandatos para lidar com as violações quando elas ocorrem.
A impunidade na Irlanda do Norte pode ser descrita como generalizada no sentido de que os assassinatos cometidos por agentes estatais, tortura, tratamento desumano e degradante, e conluio envolveram um grande número de vítimas. A impunidade é sistemática porque o Estado falhou em sua responsabilidade de investigar casos de assassinatos estatais, tortura, tratamento desumano e degradante, e conluio de forma eficaz, oficial e transparente. A natureza sistemática da impunidade é evidente no fracasso institucional do Estado em agir sobre as denúncias, fornecer recursos adequados para as investigações e processos, corrigir falhas na investigação e fornecer supervisão, parlamentar e de outro tipo, das agências estatais como a polícia, o exército e os serviços de inteligência. A impunidade estatal também é sistêmica devido às evidências de que assassinatos estatais, tortura, tratamento desumano e degradante e conluio ocorreram em múltiplos locais, durante várias décadas, evidenciando falhas de múltiplas agências estatais em cumprir suas obrigações sob os Artigos 2 e 3 da CEDH.
No entanto, a impunidade estatal, seja por intenção ou por omissões, incompetência e negligência, reflete, de acordo com as evidências encontradas pelo Painel, um nível extraordinário de falhas institucionais que geraram padrões de impunidade generalizada, sistemática e sistêmica.
RECOMENDAÇÕES
O Painel recomenda que:
1.O REINO UNIDO
- Revogue integralmente a Lei do Legado e Reconciliação da Irlanda do Norte de 2023 e permita a reabertura permanente das investigações sobre o Legado e dos procedimentos civis relacionados ao legado
- Num período intermediário antes da implementação de novas instituições, permita que o "Pacote de Medidas" existente continue funcionando e cumpra seu compromisso e suas obrigações sob a CEDH de realizar uma investigação pública independente completa sobre a morte de Pat Finucane.
2. O REINO UNIDO E A IRLANDA
- Retornem ao Acordo de Stormont House de 2014 e seu tratado de implementação de 2015, e legislem para colocar em operação a Unidade de Investigações Históricas (HIU) e a Comissão Independente para Recuperação de Informações (ICIR), de forma plenamente compatível com a CEDH e de acordo com práticas e padrões modernos de investigação; além disso,
- Como uma ampliação ao acordo de Stormont House, “Stormont House+”, ampliem o mandato da HIU e da ICIR para lidar não apenas com casos de mortes, mas também com violações do Artigo 3 da CEDH; que o Governo irlandês legisle igualmente para estabelecer uma HIU dentro de sua jurisdição.
- O Reino Unido e a Irlanda deveriam buscar o estabelecimento, com a assistência dos mecanismos de direitos humanos das Nações Unidas e do Conselho da Europa, de uma comissão internacional independente que examine de forma temática os padrões de violações de direitos humanos e impunidade durante o conflito na Irlanda do Norte, incluindo tortura e conluio, com legislação que garanta plenos poderes de divulgação.
[1] Conjunto Atualizado de Princípios sobre a Proteção e Promoção dos Direitos Humanos através do Combate à Impunidade (nº 16), E/CN.4/2005/102/Add.18 de fevereiro de 2005.